quarta-feira, 2 de setembro de 2009

na floresta do alheamento

Sei que despertei e que ainda durmo.
O meu corpo antigo, moído de eu viver
diz-me que é muito cedo ainda...
Sinto-me febril de longe. Peso-me, não sei porquê...

Num torpor lúcido, pesadamente incorpóreo, estagno,
entre o sono e a vigília, num sonho que é uma sombra de sonhar.
Minha atenção bóia entre dois mundos
e vê cegamente a profundeza de um mar e a profundeza de um céu;
e estas profundezas interpenetram-se, misturam-se,
e eu não sei onde estou nem o que sonho.

Um vento de sombras sopra cinzas de propósitos mortos
sobre o que eu sou de desperto.
Cai de um firmamento desconhecido um orvalho morno de tédio.
Uma grande angústia inerte manuseia-me a alma por dentro e,
incerta, altera-me, como a brisa aos perfis das copas.

Na alcova mórbida e morna a antemanhã de lá fora
é apenas um hálito de penumbra.
Sou todo confusão quieta... Para que há-de um dia raiar?...
Custa-me o saber que ele raiará,
como se fosse um esforço meu que houvesse de o fazer aparecer.

Com uma lentidão confusa acalmo.
Entorpeço-me.
Bóio no ar, entre velar e dormir,
e uma outra espécie de realidade surge,
e eu em meio dela, não sei de que onde que não é este...

O movimento parado das árvores: o sossego inquieto das fontes;
o hálito indefinível do ritmo íntimo das seivas;
o entardecer lento das coisas,
o cair das folhas, compassado e inútil, pingos de alheamento,
em que a paisagem se nos torna toda para os ouvidos
e se entristece em nós como uma pátria recordada...

Não tínhamos época nem propósito.
Toda a finalidade das coisas e dos seres ficara-nos
à porta daquele paraíso de ausência.
Imobilizara-se, para nos sentir senti-la,
a alma rugosa dos troncos, a alma estendida das folhas,
a alma núbil das flores, a alma vergada dos frutos...

E assim nós morremos a nossa vida,
tão atentos separadamente a morrê-la
que não reparámos que éramos um só,
e cada um, dentro de si, o mero eco do seu próprio ser...

Fernando Pessoa

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